fbpx

O fogo através do fogo: Ogum e a Calcinatio no Processo de Psicoterapia

Este estudo pretende abordar o simbolismo do fogo no processo analítico, a partir de uma operação alquímica denominada calcinatio.

Primeiramente, procurar-se-á apresentar os principais aspectos existentes na relação que se dá entre o processo alquímico e o processo analítico. Em seguida, de acordo com os estudos introduzidos pelo psiquiatra suíço C. G. Jung, será buscada uma forma de se compreender como funciona esse relacionamento que é estabelecido entre o inconsciente e a consciência na psique subjetiva. Assim, baseando-se nas informações obtidas, e utilizando-se de alguns mitos que envolvam a imagem simbólica do fogo, e também de um orixá – Ogum, a importância do aparecimento da operação de calcinatio e, por consequência da imagem do fogo, no processo de psicoterapia será identificada e discutida.

1. Introdução

Não existem dois homens iguais, no sentido de que tenham vivido a mesma vida, tenham passado pelos menos problemas ou tenham feito as mesmas escolhas. O psiquiatra suíço C. G. Jung (2006) revelou que a partir de suas observações acerca do desenvolvimento do homem, percebeu que não houve um único dia em que não encontrasse alguma questão nova ou até mesmo inesperada. O ser humano é inesgotável. Em seu livro Psicologia e Alquimia, Jung (2009b) defende que o processo analítico é resultado de um confronto dialético entre o consciente e o inconsciente, e que, nesse embate, constata-se um processo que caminha para uma direção, ou seja, para uma finalidade. Ele ainda diz que “O sentido da existência é que ela se realize como tal (como destinação individual ou self)” (Idem). Assim, pode-se admitir que viver pressupõe a realização de um todo e, que esse todo, é diferente para cada homem.

Os alquimistas estavam em busca da pedra filosofal, da pedra da imortalidade, ou da receita para a eterna juventude que, por sua vez, também, transformaria qualquer metal em ouro. Na verdade, a busca do alquimista era uma busca simbólica, o que o alquimista realmente procurava do mesmo modo e à sua maneira, era a realização de um todo e, esse todo, seria diferente para cada alquimista.

Nessa busca do homem pela totalidade, a alquimia e a psicologia se correlacionam ou em até certo ponto se conectam. Para Jung (1998) “O alquimista é um homem que busca o “mistério divino”, o mistério do inconsciente projetado por ele na matéria e, nesse sentido é alquimista todo aquele que se esforça no sentido de uma realização individual e direta de vivência do inconsciente”. Seria Jung um alquimista?

A alquimia era conhecida por ser a arte do fogo, uma vez que o alquimista era notório por sua habilidade ao lidar com o fogo. Segundo Eliade (1977), assim como o ferreiro e o oleiro, o alquimista era tido como o “senhor do fogo”. O ferreiro também era Ogum, e em todos os casos, o fogo, o elemento da transmutação. Quando o homem domina o fogo, ele passa a produzir cultura, e também, por consequência, passa a modificar a natureza. A alquimia é uma obra contra a natureza (opus contra naturam), assim, como de certa maneira, a psicoterapia ao mesmo tempo é.

Para que exista um processo de psicoterapia, e do mesmo modo, para que um processo de individuação seja iniciado, é necessária a existência de uma consciência. A consciência também pode ser fogo e, é através da consciência que qualquer processo é diferenciado; é ela que separa o homem da natureza, mas no mesmo momento em que o faz se sentir integrado a ela.

Fierz (1997) concorda com Jung (2009b) quando salienta que nos dias de hoje a ciência moderna descreve a alma com frases criadas de raízes latinas ou gregas: como ego, inconsciente, motivação, dissociabilidade e tensão; no entanto, na alquimia, ao contrário, o diagnóstico do estado mental e do processo do desenvolvimento espiritual é representado com a ajuda de imagens, nas quais cada pormenor encerra um significado, e essas figuras são acompanhadas por textos simbólicos. O autor acredita (Idem) que “juntas, as figuras e o texto, falam a linguagem como encontramos nos sonhos das pessoas e nas suas fantasias”.

Ainda segundo Fierz (1997), Jung através da psicologia analítica “abre nossos olhos para a alquimia, que de maneira responsável e com alto nível cultural, fornecia acesso diretamente às bases da vida interior”. Como se passa a vida interior do homem? Qual é sua busca?

Este estudo pretende abordar o simbolismo do fogo no processo analítico, a partir de uma operação alquímica denominada calcinatio. No entanto, para que esse objetivo seja cumprido algumas questões deverão ser exploradas. Primeiramente, procurar-se-á apresentar os principais aspectos da relação existente entre o processo analítico e o processo alquímico. O que buscava a alquimia no passado e o que busca a psicoterapia nos dias de hoje? Quais são as semelhanças entre esses dois processos? Em seguida, será necessário compreender o relacionamento que se estabelece entre o consciente e inconsciente na psique subjetiva. Qual seria o papel da consciência? Para que finalmente, após a obtenção dessas informações, seja possível de se identificar a importância da operação de calcinatio para o processo de psicoterapia. Quando o fogo da calcinatio aparece? Qual a função desse fogo?

A importância do símbolo do fogo para a psique é indiscutível. Qualquer tipo de processo pelo qual a psique passe está de alguma maneira, envolvido pelo fogo; pode-se afirmar, inclusive, que os processos são o fogo, e vice-versa. Devido a esta característica, a importância de um estudo sobre a imagem do fogo se mostra de grande valor para a psicoterapia. Outra prova disso, também, pode ser vista pela presença do fogo nas mais diversas mitologias. Para essa pesquisa, será observada a relação de Ogum, um deus iorubá – chamado por Orixá nessa cultura- com o fogo.

A busca da verdade pelo Astrônomo. Xilogravura alemã do século XVI.
Fonte: Huxley (1977)

Este estudo possui um caráter teórico, tendo por base um levantamento bibliográfico acerca dos conteúdos de interesse para a pesquisa. E o método que foi utilizado para o trabalho com as imagens da calcinatio na psique denomina-se amplificação. Esse método, que por sua vez era utilizado por Jung, consistia no “alargamento e aprofundamento de uma imagem por meio de associações dirigidas e de paralelos tirados das ciências humanas e da história dos símbolos”. (Jung, 2006 p.483).

Pessoalmente, a imagem do fogo sempre esteve presente em meus sonhos, fato que se torna um combustível a mais para que esta pesquisa seja desenvolvida. Pois, assim como os alquimistas dizem “não há ciência sem a participação pessoal nos fenômenos observados”. (Fierz, 1997 p.333).

2. A Psicoterapia e os Processos Alquímicos

“A natureza alegra a natureza, a natureza vence a natureza, a natureza domestica a natureza”. (M. Berthelot)

Muito se discute acerca da alquimia, mas muito pouco pode ser realmente afirmado sobre essa arte. Em Psicologia e Alquimia, Jung (2009b, p.293) afirma que o método de explicação da alquimia era “obscurum per obscurius, ignotum per ignotius”- o obscuro pelo mais obscuro, o desconhecido pelo mais desconhecido. Popularmente, a alquimia está relacionada com a busca pelo ouro, ou seja, com a procura por uma receita que seja capaz de transformar simples metais no metal de maior nobreza, ou também, pela busca do elixir da juventude – busca por uma maneira de se chegar à imortalidade. “A alquimia é a arte da transmutação dos metais com vistas à obtenção do ouro”, diz Chevalier (2008, p. 38). Entretanto, continua o autor (Idem) produzir ouro metálico para o gozo próprio, ou até mesmo, como na China, ouro potável, para consumindo-o, atingir a longevidade corporal, nada disso é, na verdade, o real objetivo da alquimia.

No livro A Alquimia e a Imaginação Ativa, Von Franz (1998) afirma que segundo suas pesquisas a alquimia surgiu no século I a.C., sendo fruto da união de tendências de duas civilizações: os gregos e os egípcios. Os filósofos gregos iniciaram o pensamento racional refletindo sobre questões relacionadas à natureza, à matéria, ao tempo e ao espaço. No entanto, suas teorias não eram experimentadas na prática, ao passo que os egípcios eram portadores de uma técnica químico-mágica muito desenvolvida, mas não havia reflexão alguma sobre esses processos. Essas técnicas eram usadas exclusivamente com intuitos religiosos. Ao se encontrarem, os egípcios passaram a refletir sobre os aspectos interiores de seus processos e os gregos sobre os mecanismos relacionados à concretização de suas experiências filosóficas. A partir desse encontro, ocorre, portanto, uma inversão de opostos, os gregos que possuíam uma tradição introvertida passam para uma visão extrovertida de seus processos, ao mesmo tempo em que os egípcios começam a partilhar de uma visão introvertida.

Quando a ciência é feita de maneira extrovertida, o seu lado concreto que é valorizado, e o que se obtém como resultado em geral são manuais de receitas, desenhos esquemáticos, esboços, etc., por outro lado, na tradição introvertida, o fator subjetivo é o de maior valor. Nesse caso, o observador não é excluído do experimento, e seus fatores internos também são considerados de grande importância. Essas duas correntes vão se alternando ao longo de nosso tempo em todas as ciências, porém Von Franz (1998) salienta que do século XVI em diante, tudo passa a ocorrer de forma unilateral, sendo que a maioria dos processos acontece na linha da experiência e com uma abordagem extrovertida.

Para o alquimista, o ponto de vista introvertido é aquele que deve ser valorizado, ou pelo menos, é a partir dessa visão que ele constrói a sua busca, uma vez que ele acredita que as questões de maior importância residam dentro dele mesmo, e que ao trabalhar com materiais externos, estaria por analogia, trabalhando com seu material interno:

Essas pessoas abordavam o problema sob outro pressuposto, o de que o mistério que tentavam descobrir, o mistério da estrutura do universo, estava neles mesmos, em seus próprios corpos e naquela parte de sua personalidade que chamamos de o inconsciente, mas que eles diriam ser a vida de sua própria existência material.(VON FRANZ, p.16 1998.)

Tendo como base os processos que ocorrem no próprio experimentador, ou seja, no próprio alquimista, de certo modo, a alquimia foi sendo desenvolvida nas mais diversas civilizações, e por consequência, interagindo com as mais diversas culturas: na China, por exemplo, as técnicas alquímicas se uniram aos meios taoístas (ELIADE, 1977) ; na Índia ocorreu uma simbiose entre a Ioga tântrica e a alquimia (Idem); assim, novos elementos foram sendo introduzidos na alquimia à medida que ela se expandia. A alquimia medieval recebe influências de duas gnoses filosóficas: o neoplatonismo e o hermetismo (Idem). No entanto, é a partir desse momento, que os cientistas começam a investigar se a alquimia realmente é efetiva ou se é apenas algo desenvolvido por impostores.

Com a chegada do século XVIII, os princípios que baseiam a alquimia entram em conflito com a busca pela racionalidade que determina o movimento iluminista. Por ser uma arte de caráter obscuro, o confronto com esse novo espírito que estava se desenvolvendo na época é inevitável, logo a “química tornou-se uma ciência natural e os alquimistas passaram a se dedicar unicamente à filosofia”. (JUNG, 2008b)

De maneira geral, a alquimia delineava um processo de “transformação química”- que também podia ser entendida como a obra, e por consequência, ditava as instruções para que esse processo fosse completado. No entanto, o modo como esse processo era encaminhado, e até mesmo, descrito, variava de adepto para adepto. Cada alquimista possuía uma linguagem própria, e talvez por isso, é que até hoje o estudo da alquimia seja tido como um estudo muito complexo e complicado. Existem alguns pontos em comum, que devem ser observados, os estágios da obra (Figura 2), por exemplo, eram definições aceitas por quase todos os alquimistas. A obra, de acordo com a descrição de Jung (2008b), podia ser dividida em quatro partes: melanosis (o enegrecimento), leukosis (embranquecimento), xanthosis (amarelamento) e iosis (enrubescimento).
Para que esses estágios fossem sendo alcançados, o alquimista submetia a matéria prima a uma série de operações, que mais uma vez, não eram diretamente confirmadas, mas que de acordo com Jung (2008b), seguindo a lista comum entre dois alquimistas, Paracelso e Josephus Quercetanus, podia ser a seguinte:

  1. Calcinatio (calcinação)
  2. Solutio (solução)
  3. Elementorum separatio (separação de elementos)
  4. Coniunctio (conjunção)
  5. Putrefactio (putrefação)
  6. Coagulatio (coagulação)
  7. Cibatio (nutrição)
  8. Sublimatio (sublimação)
  9. Fermentatio (fermentação
  10. Exaltatio (exaltação
  11. Augmentatio (ampliação)
  12. Proiectio ( projeção)

É importante compreender que cada uma dessas operações contém uma vasta simbologia, já que cada uma delas está ligada aos mais diversos elementos ou fatores. Para esse estudo, a operação de maior importância será a calcinatio. Desse modo, essa operação alquímica será aprofundada ao longo da pesquisa.

Os quatro estágios do processo alquímico (os quatro elementos são indicados pelas esferas).
MYLIUS, Philosophia reformata (1622).
Fonte: JUNG (2008b)

Além da lista de operações e dos estágios da obra, existem alguns outros termos que também devem ser citados por terem grande frequência nos textos alquímicos: Sol e Lua, Rei e Rainha, Enxofre e Mercúrio, Sal, etc., lembrando-se sempre que assim como as concepções de obra mudavam de alquimista para alquimista, o significado de cada um desses elementos também abarca uma série de imagens.

Von Franz (1993) afirma que “Jung introduz a alquimia na psicologia através de seu livro Psicologia e Alquimia”. O autor começa a estudar a alquimia e, logo entende que as imagens e os textos que esses autores produziam se pareciam muito com a ciência que ele próprio desenvolvia e acreditava. Em Psicologia e Alquimia, Jung (2008b) declara que “cedo percebi que a psicologia analítica coincidia de modo bastante singular com a alquimia. As experiências dos alquimistas eram, num certo sentido, as minhas próprias experiências, assim como seu mundo era meu mundo”. Para Edinger (2006) o processo de psicoterapia coloca em movimento muitos acontecimentos, às vezes é muito fácil tanto para o paciente como para o terapeuta se perder no processo, portanto é comum que haja um apego desesperado a alguma teoria. No entanto, o autor afirma que (Idem) deve-se procurar compreender e seguir a psique em seu próprio âmbito, e é exatamente desse modo que o alquimista exerce seu oficio: “Dissolvendo a matéria em sua própria água”. A via alquímica é a via da natureza (via naturae) como o é também a via junguiana. (PERROT, 1998)

Fierz (1997) diz que percebeu que as imagens trazidas por um de seus pacientes se assemelhavam em muito com as imagens alquímicas provenientes do Tratado de Lambspring. Foi a partir desse momento que ele começou a utilizar mais essas imagens em seu trabalho psicoterápico, passando a compreender melhor o comportamento de seus pacientes através da simbologia dessas pranchas alquímicas. Todo trabalho de psicoterapia visa de um modo geral, entender e o orientar o paciente diante de seus desafios de vida. Uma investigação tão profunda a respeito da alma é algo muito perigoso, que requer muita responsabilidade, e por isso, a psicoterapia possui um caráter tão delicado. Um passo em falso nesse processo pode gerar resultados desagradáveis, muitas vezes até irreversíveis.

Edinger (2006) “acredita que o que torna a alquimia tão valiosa para a psicoterapia é o fato de suas imagens concretizarem as experiências de transformação por que passamos na psicoterapia”. Desse modo, a alquimia se mostra de grande importância, inclusive para o homem moderno, na sua busca pela totalidade, integração com a natureza e, consequentemente, sua própria cura.

3. A Psique e a Busca pela Consciência

Em seu livro O Homem e seus Símbolos, Jung (1995 p.24) diz que “A psique faz parte da natureza e o seu enigma é, igualmente, sem limites. Assim, não podemos definir nem a psique nem a natureza. Podemos, simplesmente, constatar o que acreditamos que elas sejam e descrever, da melhor maneira possível, como funcionam”. Desse modo, pode-se perceber que a psique de forma alguma pode ser igualada ao que se chama de consciência, a psique é algo maior, algo que naturalmente abrange a consciência, mas que, no entanto, somente através dela, ou seja, só permeada pela consciência é que a psique pode ser experienciada.

A psique é o mundo total da vida mental consciente e inconsciente. Ninguém conhece seus limites. Ela contém nossos modelos do mundo exterior. Os complexos são os fundamentos da construção da parte pessoal da psique, e os arquétipos constituem os grandes padrões primordiais da psique objetiva (o inconsciente coletivo). Os complexos (assim como a nossa identidade, que os toma por base) alteram o processo de individuação, sob a pressão do Si-mesmo, promovendo a atualização das nossas potencialidades inatas. A individuação é antes uma direção que um alvo a ser atingido nesta vida. (HALL, 1988)

Para que o processo de individuação ocorra é necessário antes de tudo que haja um desenvolvimento da consciência, assim quanto maior a conscientização de conteúdos psíquicos, mais abrangente se torna a personalidade. Entretanto, o termo consciência não é algo muito fácil de ser definido. A consciência existe na medida em que se diferencia do inconsciente. Mas, o que realmente se pode dizer a respeito da consciência? E o que realmente se pode dizer a respeito do inconsciente?

A dissociabilidade é uma característica natural da psique, que é formada por vários complexos; um desses complexos é o ego, que é responsável pela conscientização dos conteúdos dessa psique. Além do ego, existem outros complexos que também devem ser citados como parte estruturante da psique: a sombra, a persona, o animus/anima e, por fim o próprio self. Cada um desses complexos possui um grupo de imagens relacionadas entre si, e de acordo com os estudos de Jung, o núcleo dos complexos seriam os arquétipos. Esses complexos são carregados por energia, podendo estar perto ou longe do ego. Os complexos existem independentes de sua relação com o ego.

Em Tipos Psicológicos, Jung (1991) entende que a consciência se dá na relação de conteúdos psíquicos com o ego – termo proveniente do latim que significa eu – a partir da percepção do ego dessa relação, sendo que as relações de conteúdos não percebidas pelo ego são chamadas de inconscientes. A consciência sustenta a relação dos conteúdos psíquicos com o ego, mas esses conteúdos psíquicos não estão necessariamente todos ligados ao ego. Existe uma estrutura que vai além do ego, comportando tanto os conteúdos inconscientes quanto os conteúdos que já passaram pela luz da consciência.

Entendemos por “eu” aquele fator complexo com o qual todos os conteúdos psíquicos se relacionam. É este fator que constituiu como que o centro do campo da consciência, e dado que este campo inclui também a personalidade empírica, o eu é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa. Esta relação de qualquer conteúdo psíquico com o eu funciona como critério para saber se este último é consciente, pois não há conteúdo consciente que antes não tenha se apresentado ao sujeito. (JUNG, 2008 p.13.)

Qualquer capacidade ou limitação é condicionada pela consciência, que também é responsável pela percepção do seu próprio centro – o ego. Os limites do campo da consciência são indeterminados e podem se estender de tal maneira até se depararem com o desconhecido. O eu é um fator consciente por excelência, que constitui empiricamente a existência individual. Ele ilumina, e permite que as possibilidades inatas escondidas no homem sejam realizadas. Toda e qualquer possibilidade existente dentro do homem, só pode ser realizada após ser vista pelo ego.

Em Fundamentos de Psicologia Analítica, Jung (2008b) diz que o ego é um dado complexo formado primeiramente por uma percepção geral de nosso corpo e existência, e a seguir, pelos registros de nossa memória. Considera ainda o ego é como um complexo de fatos psíquicos com força de atração muito poderosa aos conteúdos do inconsciente, chamando também para si impressões do exterior que se tornam conscientes ao seu contato. O ego é o centro dos desejos do homem sendo de caráter indispensável para a consciência. A consciência, por sua vez, é fundamental para o inconsciente, pois sem ela o inconsciente não pode se fluir. Mas, a consciência é apenas um canal de comunicação, e deve permitir que ocorra essa fluidez.

Em seu livro A Criação da Consciência, Edinger (1999) admite que “a experiência da consciência é composta por dois fatores: o “conhecer” e o “estar com”. Quanto à função psicológica de “conhecer”, nesse contexto deve haver um sujeito e um objeto, ou seja, o conhecedor e o conhecido. Assim, o que ocorre é uma divisão na unicidade, na experiência indiferenciada. “Cada vez que o ego recai num conteúdo inconsciente, só pode conscientizar-se dele através de um ato de separação que lhe permita ver o conteúdo psíquico emergente e, desse modo, desindentificar-se dele”. (Idem)

No entanto, o autor afirma que ser o sujeito que conhece é apenas metade do processo, existe ainda a outra metade da experiência: ser o objeto conhecido. Edinger (1999) acredita que essa experiência de certo modo ocorre na psicoterapia, sendo que o terapeuta se torna o alvo da projeção do “outro conhecedor”.

O processo de conhecer é um processo de poder. Ser conhecedor significa dominar o objeto pelo poder do Logos. Ser conhecido equivale a ser vítima do conhecedor. Participar do processo de conhecimento significa representar um desses dois papéis ou ambos alternadamente. (EDINGER, 1999 p.49)

Edinger (1999) acredita que “se conhecer é uma função de Logos, o estar com é uma função de Eros”, desse modo, a experiência de estar com implica em um relacionamento, que por sua vez tanto pode ser com um objeto externo, quanto com um outro eu interno. Assim, pode-se perceber que as relações que ocorrem entre o ego e o Self promovem a consciência um do outro mutuamente.

4. Calcinatio

Em seu livro Anatomia da Psique, Edinger (2006) afirma que a seqüência das operações alquímicas parece não ter importância do ponto de vista da significação psicológica, mas que, no entanto, a operação calcinatio é tida como a operação inicial em grande parte das listas dos alquimistas.

A “Montanha dos Adeptos”. Michel Spacher (1654).
Fonte: Edinger (2006).

Assim como a maioria das imagens alquímicas, a calcinatio em partes deriva de um procedimento químico, a calcinação. De acordo com Heck (2010), a calcinação é um tratamento de remoção de água, CO2 e outros gases que estão ligados quimicamente a alguma outra substância, que pode ser tipicamente um hidrato ou carbonato. É um procedimento vigorosamente endotérmico, ou seja, o calor é absorvido nessa reação, que necessita de fontes de altas temperaturas, podendo chegar aproximadamente até 900oC. Segundo Edinger (1990), o exemplo clássico de calcinação, do qual surgiu o termo cal (calx= cal), é o aquecimento da pedra calcária (CaCO3) ou do hidróxido de cálcio (Ca(OH)2) para produzir a cal viva (CaO, calx viva). Ao se acrescentar água a cal viva, esta produz calor. Devido a essa propriedade, muitos alquimistas acreditavam que a cal portava o fogo dentro de si, e por diversas vezes, já chegaram a compará-la ao próprio fogo.

Na alquimia, é necessário observar que cada elemento está relacionado a uma operação, sendo que a operação alquímica que se remete à água chama-se solutio, a da terra é a coagulatio, a do ar é a sublimatio, e finalmente, a calcinatio é a operação do fogo. Toda imagem que contiver o fogo livre queimando ou afetando alguma substância está se dirigindo consequentemente para uma calcinatio. Porém, é importante ressaltar que o simbolismo do fogo é muito amplo e ramificado. Em Símbolos da Transformação, por exemplo, Jung (2008c) afirma que o fogo simboliza a libido. Dessa forma, não se deve tentar especificar a imagem do fogo unicamente como calcinatio, mas procurar examinar a aparição fenomenológica dessa imagem.

Nos processos alquímicos a calcinatio busca transformar o que é negro em o que é branco através do seu calor. Esta operação atua sobre a nigredo, que seria de acordo com os alquimistas, a massa confusa, a matéria prima, aquecendo-o, ou seja, transformando- a no estado branco ou albedo, que simbolicamente pode ser definida como um momento de maior entendimento. Jung (2008d, p.138) diz que “o alvejamento ( albedo s. dealbatio) é comparado ao “ortus solis” (nascer do sol). É a luz que surge após as trevas, a iluminação após o obscurecimento.” Em seguida, o autor (Idem) cita Hermes, para mais uma vez, demonstrar a calcinatio no processo alquímico: “Alvejai a matéria negra e rasgai os livros, para que não se rompam vossos corações. Pois esta é de fato a síntese da obra de todos os sábios bem como a terça parte do opus inteiro. Ligai, pois, como diz a Turba1, o seco ao úmido, isto é a terra negra à sua água e cozei-a até que se torne branca. Assim, obtereis a água e a terra por si mesmas e a terra alvejada com a água: essa brancura é chamada ar”. Pode-se perceber nesse texto uma receita de calcinatio, no entanto, o fogo aqui está ligado à imagem da água. Os alquimistas diziam que existia um fogo que também era água, que por sua vez, seria o fogo da calcinatio.

Em seu livro Mysterium Coniunctionis, Jung (1985) apresenta o seguinte texto de Philaleta:

“Se souberes irrigar esta terra árida com a água apropriada, dilatarás (ou afrouxarás) os poros da terra, e se este ladrão exterior for lançado fora com os que operam iniquidade, pelo acréscimo de enxofre verdadeiro, a água será purificada da sujeira leprosa e da umidade hidrópica supérflua e assim terás virtualmente a frontezinha do conde de Trevis, cujas águas com toda a razão são dedicadas a virgem Diana. Quero decantar o que é vivo, e que deseja a morte nas chamas… Este ladrão é um imprestável munido de maldade arsenical, de quem tem horror e foge o jovem alado. E ainda que a água central seja sua esposa, contudo não ousa ele mostrar seu amor ardentíssimo para com ela, por causa das ciladas do ladrão, cujas maquinações são deveras inevitáveis. Cujo par de pombas suavizará a malignidade do ar por meio de suas asas, para que o ar penetre facilmente pelos poros, e o jovem abale os fundamentos da Terra e produza a nuvem tétrica, mas tu elevarás as águas até o fulgor da Lua e deste modo as trevas, que pairavam sobre a face do abismo, serão afugentadas pelo espírito que move nas águas. Assim, por ordem de Deus aparecerá a luz”.

A aparição da calcinatio também pode ser observada nesse documento: “Quero decantar o que é vivo, e que deseja a morte nas chamas…”. Os alquimistas utilizavam a calcinatio, portanto, com fins de purificação. Era depois da passagem pelo fogo que o material a ser trabalhado era identificado. A matéria prima era diferenciada, ou seja, a calcinatio livra a matéria de tudo o que é naturalmente impuro nela mesma.
1 Uma das autoridades clássicas de origem árabe.

“A luta com o dragão”. Tratado de Lambspring.
Fonte: Fierz (1997)

A Figura 4, que tem por título a Putrefação, também diz respeito à operação de calcinação. Esse emblema pertence ao Tratado de Lambspring que foi analisado por Fierz (1997) em seu livro Psiquiatria Junguiana. Fierz (Idem) cita que Lambspring relaciona essa imagem à citação “A negridão do Dragão desaparecerá e um branco puro aparecerá”. Simbolicamente, o que esta sendo demonstrado é a questão das explosões de afeto e emoção.

4.1 Os Afetos e a Emoção na PsiqueEm Fundamentos de Psicologia Analítica, Jung (2008b) diz que “A palavra “emocional” é invariavelmente aplicada quando surge uma condição caracterizada por enervações fisiológicas. Assim, se pode medi-las até certo ponto, não em manifestações psicológicas, mas físicas”. Jung (Idem) cita a teoria de James-Lange para definir o que ele entende por emoção: “a teoria JAMES-LANGE sobre emoção diz que só acontece realmente uma emoção quando tomamos consciência das mudanças fisiológicas da condição geral”. Desse modo, pode-se entender que quando um estímulo é recebido, determinadas funções no corpo do homem são alteradas, quando essas mudanças são percebidas, uma resposta a elas é produzida, essa resposta denomina-se emoção. A função sentimento está de certa maneira relacionada com a emoção. Na medida em que um sentimento (que pertence ao âmbito da consciência e tem caráter racional) se torna muito forte, ele pode se transformar em uma emoção, mas esse fato só se torna verdadeiro assim que o sentimento possuir intensidade suficiente para produzir alguma mudança fisiológica.

Jung acredita (2008b) que emoção e ao afeto possuem o mesmo significado, sendo que ambos interferem em nossa personalidade, e que dessa maneira, por eles somos carregados. Quando o indivíduo é afetado por alguma emoção, ele se transforma rapidamente, perdendo o controle. O autor utiliza o exemplo da raiva: só sentimos realmente raiva, quando sentimos o sangue subir à cabeça, antes disso, é apenas uma antecipação mental, uma vez que temos consciência da nossa fúria, ela aumenta duas vezes mais (Idem). As emoções desviam a atenção do ego, não sendo manejáveis como as idéias ou como os pensamentos, no entanto, o processo analítico só é possível justamente em decorrência desses valores afetivos.

São os valores afetivos que determinam o papel de cada conteúdo na psique, uma vez que é seguindo esse valor que se saberá a intensidade das imagens, assim como a tensão energética resultante delas, em suma, o potencial de ação de um complexo.

Segundo Jung (2008a, p.52) esses valores tanto podem ser positivos quanto negativos, podem ser fáceis ou apresentarem qualidades afetivas difíceis de serem definidas. É inerente a todo processo psíquico a qualidade de valor, isto é, a tonalidade afetiva. Essa tonalidade indica-nos em que medida o sujeito foi afetado pelo processo, ou melhor, o que este processo significa para ele na medida em que alcança a consciência. É mediante o “afeto” que o sujeito é envolvido e passa, consequentemente, a sentir todo o peso da realidade.

 

4.2 A Calcinatio e os AfetosA calcinatio está relacionada ao purgatório e ao fogo purgador. O fogo da calcinatio é o fogo que testa a matéria negra. Algo que é imune ao fogo indica algo que é imune à identificação com o afeto. Um ego fraco é considerado um ego que é facilmente dominado por afetos e consumido nesse encontro. O processo de psicoterapia envolve a conscientização de complexos inconscientes. A calcinatio pode ser vista simbolicamente como um processo de secagem desses complexos, pois é a partir do fogo ou da energia que alimenta o próprio complexo que o paciente começa a torna-se consciente. A intensidade emocional reside nesse mesmo complexo, que precisa de alguma forma, ser expresso. Uma vez que o afeto é liberado, o complexo é purificado e não possui mais energia para uma contaminação autônoma do inconsciente.

Para que ocorra uma calcinatio adequada, o material a ser trabalhado deve ser corretamente localizado, caso contrário, o que estará acontecendo não se diferenciará de uma autoflagelação. A expressão de atitudes e de reações que frustrem o paciente se equipara ao fogo da calcinatio. É necessário, portanto, que exista uma tendência no paciente para a auto-calcinatio. Que o desejo inconsciente que será frustrado, seja ao mesmo tempo uma tendência negativa no interior do sujeito.

“Muitos alquimistas praticantes cometem um erro já de início, ao realizarem essa calcinatio com substância errada… ou ao escolherem falso método, corroendo, em vez de calcinar, os corpos metálicos com quais operam. A calcinação só pode ocorrer por meio do aquecimento interior do corpo, assistindo pelo amigável calor exterior, mas a calcinação através de um agente heterogêneo só pode destruir a natureza metálica, se é que tem algum efeito”. (EDINGER, 1990 p.62)

Fierz (1997, p. 355) comenta acerca do Tratado de Lambspring, nele o alquimista está trabalhando na salamandra (Figura 5), que, por sua vez, está no fogo, com o tridente. Se comparada com as figuras anteriores, nota-se que a salamandra é uma forma mais suave, domesticada do dragão, o grande afeto. Ela não apenas é mantida no fogo, mas também nasce do fogo em sua forma verdadeira efetiva, porque a salamandra é a criatura da transformação que surge em flamejante afeto dentro do fogo.

O autor trabalhando com a salamandra no fogo. Tratado de Lambspring.
Fonte: Fierz (1997)

Pela passagem do fogo da calcinatio é que nossos desejos são transformados. Os nossos desejos primitivos são frustrados e transmutados em novos conteúdos. “Ou, dito de outra forma, as energias da psique arquetípica primeiro aparecem em estado de identificação com o ego, exprimindo-se como desejos de prazer para o ego, de poder para o ego. O fogo da calcinatio purga essas identificações e impulsos da raiz ou umidade primordial, deixando o conteúdo em sua condição eterna ou transpessoal, tendo restado seu aquecimento natural – isto é, sua energia e seu funcionamento próprios.” (EDINGER, 1990).

Desse modo, a calcinatio representa uma nova forma de relacionamento com os afetos, uma vez que o aspecto arquetípico da existência passa a ser observado. A partir do momento que o ocorre um relacionamento com o aspecto transpessoal da nossa psique, os afetos passam a ser experimentados não mais como desejos frustrados, mas sim como algo de espiritual. Ou seja, ocorre uma transformação do desejo. Edinger (1998) cita Jung 2 “O fogo do desejo é o elemento que deve ser combatido no bramanismo, no budismo, no tantrismo, no maniqueísmo, no cristianismo. Também tem importância em psicologia. Quando você se abandona ao desejo, seu desejo se volta para o céu ou para o inferno.”

De acordo com Fierz (1997, p. 335), como imagem, o forno reúne o fogo (nossos afetos) e os encerra; significa que temos que controlar nossos afetos e tentar não explodir. Devemos trabalhar nossos afetos, e desse modo enfrentar nossa realidade e a realidade do mundo exterior.

4.3 A Calcinatio em OgumComo foi dito anteriormente, a vida psíquica só pode ser reconhecida por conteúdos capazes de serem conscientizados, ou seja, o inconsciente é comprovado à medida que seus conteúdos são revelados, esse é o caminho da individuação. Os conteúdos que formam o inconsciente coletivo são denominados arquétipos e, esses arquétipos podem ser expressos através dos mitos. Os mitos demonstram determinadas situações que ocorrem no Cosmo, ou seja, a realidade final das coisas, mesmo que não podendo ser expressa em palavras, ainda assim, pode ser revelada e, cabe ao mito – expressão imagética dos arquétipos – traduzir essa realidade, da maneira que lhe é apropriada.

Popularmente, Ogum é conhecido e cultuado como orixá do fogo e da guerra. O combate, a luta e as batalhas estão relacionados à sua figura, sendo sincretizado na cultura brasileira à imagem de São Jorge, o matador de Dragão. Segundo Verger (2002), o culto ao Orixá Ogum é bastante difundido na cultura Iorubá. Ogum é tido como o deus iorubá mais respeitado, e também, como o mais temido. Sua importância deve-se ao fato de sua ligação com os metais e com aqueles que os utilizam. Ainda segundo o autor (Idem), esse deus iorubá é representado nos lugares que lhe são consagrados por sete instrumentos de ferro: lança, espada, enxada, torques, facão, ponta de flecha e enxó. Dessa maneira, Ogum como Orixá é o deus do ferro, dos ferreiros e de todos aqueles que utilizam esse metal: agricultores, caçadores, açougueiros, barbeiros, marceneiros, carpinteiros, escultores e ainda, os mecânicos, os condutores de automóveis ou trens e os reparadores de máquinas, sendo que sem a proteção e permissão de Ogum nenhuma dessas atividades ou qualquer outro tipo de trabalho seria possível.

As características desse orixá estão intimamente relacionadas às qualidades do homo faber. Ogum é o deus que abençoa aqueles que desempenham o papel de transformadores da natureza, ou seja, partindo desse pressuposto, Ogum também pode ser visto como o orixá dos Alquimistas. Eliade (1977) comenta acerca de uma figura mítica do Ferreiro-Herói-Civilizador africano que ainda não perdeu a significação religiosa do trabalho metalúrgico: o Ferreiro celeste completa a criação, organiza o mundo, introduz a cultura e guia os seres humanos até o conhecimento dos mistérios.

Orixá Ogum e suas armas.
Fonte: http://alabedeogum.blogspot.com/ (2010)

Ao descrever as qualidades de Ogum, Verger (2002) admite que como orixá “Ele é sempre o primeiro, aquele que abre os caminhos, inclusive para os demais orixás”. O caráter pioneiro desse orixá pode ser percebido através de seus Orikis – uma forma de prece Iorubá, e também através do mito de como Ogum se tornou um orixá:

“Ogum que, tendo água em casa, lava-se com sangue Os prazeres de Ogum são os combates e as lutas. Ogum come cachorro e bebe vinho de palma. Ogum, o violento guerreiro, O homem louco com músculos de aço, O terrível ebora que se morde a si próprio sem piedade. Ogum que come vermes sem vomitar. Ogum que corta qualquer um em pedaços mais ou menos grandes. Ogum que usa chapéu coberto de sangue. Ogum, tu és o medo na floresta e o temor dos caçadores. Ele mata o marido no fogo e a mulher no fogareiro. Ele mata o ladrão e o proprietário da coisa roubada. Ele mata o proprietário da coisa roubada e aquele que critica a ação. Ele mata aquele que vende um saco de palha e aquele que compra ”.

Ogum mata seus súditos e é transformado em Orixá

“Ogum decidiu, depois de numerosos anos ausente de Irê, voltar para visitar seu filho. Infelizmente, as pessoas da cidade celebravam, no dia da sua chegada, uma cerimônia em que os participantes não podiam falar sob pretexto algum. Ogum tinha fome e sede; viu vários potes de vinho de palma, mas ignorava que estivessem vazios. Ninguém o havia saudado ou respondido à suas perguntas. Ele não era reconhecido no local por ter ficado ausente durante muito tempo. Ogum, cuja paciência é pequena, enfureceu-se com o silêncio geral. Por ele considerado ofensivo. Começou a quebrar com golpes de sabre os potes e, logo depois, sem poder se conter, passou a cortar as cabeças das pessoas mais próximas, até que seu filho apareceu. Oferecendo-lhe as suas comidas prediletas, como cães e caramujos, feijão regado com azeite de dendê e potes de vinho de palma. Enquanto saciava sua fome e sua sede, os habitantes de Irê cantavam louvores (…). Satisfeito e acalmado, Ogum lamentou seus atos de violência e declarou que já vivera bastante. Baixou a ponta de seu sabre em direção ao chão e desapareceu pela terra adentro com uma barulheira assustadora. Antes de desaparecer, entretanto, pronunciou algumas palavras. A essas palavras, ditas durante uma batalha, Ogum aparece imediatamente em socorro daquele que o evocou. Porém, elas não podem ser usadas em outras circunstâncias, pois, se não encontra inimigos diante de si, é sobre o imprudente que Ogum se lançará”.

Pode-se perceber através desses dois mitos uma ligação muito íntima entre esse Orixá e a operação alquímica de calcinatio. Ogum que em sua mitologia também está relacionado ao fogo, tem função de um Deus purificador. Ele separa tudo o que não tem serventia, tudo o que não é verdadeiro. Ogum é o Orixá que abre os caminhos, assim como a calcinatio que limpa a matéria prima, para que assim posteriormente, ela seja manipulada.

5. Considerações Finais

Onde cresce o perigo, cresce também a salvação. (Holderlin)

A coragem pode ser representada por várias imagens, principalmente pela imagem do guerreiro ou do herói, etimologicamente, é proveniente do latim cor ou cordis que também pode significar coração. Portanto, a coragem está dentro do homem, assim como tudo o que ele é ou pode vir a ser. Em República, Platão diz que a coragem esta relacionada ao thymós – o elemento animoso: intelectual e sensual do homem – e esses, por sua vez, estão relacionados com uma camada da sociedade denominada phylakes (guardiães). A coragem é um esforço não pensado em busca do que é nobre; enfrentar dor e morte, construindo uma ponte entre a razão e o desejo. Essa virtude seria capaz de iniciar algo novo e de buscar outros caminhos, sem se acovardar ou ser seduzida pelo temor, sendo que a coragem é reconhecida como a justiça da vontade.

“A coragem faz aquilo que é para ser louvado e rejeita o que é para ser desprezado. Louva-se o que em um ser realiza suas potencialidades ou atualiza suas perfeições. Coragem é a afirmação da natureza essencial de uma pessoa, o alvo íntimo de alguém, ou enteléquia, porém é uma afirmação que tem em si própria o caráter de “apesar de”. Inclui o sacrifício possível e, em certos casos, inevitável, de elementos que também pertencem ao nosso ser, mas que, se não sacrificados, impedir-nos-iam de atingir a nossa realização. Este sacrifício pode incluir prazer, felicidade, e mesmo a própria existência. É louvável em qualquer caso, porque no ato de coragem a parte mais essencial do nosso ser prevalece sobre a menos essencial”. (TILLICH, 1992)

Jung (1995 p. 85) diz que “A vida é uma batalha. Sempre foi e sempre será. E se tal não acontecesse ela chegaria ao fim”. Portanto, é preciso coragem para se viver, é preciso coragem para se enfrentar a batalha. É preciso de coragem para que a consciência seja criada, e acima de tudo, é preciso de coragem para enfrentar o fogo da calcinatio.

Expulsão dos Demônios. Gravura Anônima (séc. XVII).
Fonte: Jung (2008c)

A calcinatio nos proporciona uma nova maneira de relacionamento com os aspectos transpessoais da psique, a partir dessa transformação passa-se a experimentar o fogo como algo espiritual não mais algo terrestre. Edinger (1998) cita Jung3 ao falar sobre essa dura transformação que envolve muito suor e sofrimento “… quando o seu demônio sofre, você também sofre…”, no entanto, após essa passagem pode-se perceber um crescimento interior muito recompensador e confortante. O que será muito necessário, uma vez que a calcinatio é apenas o começo para uma grande jornada. Tanto a jornada do alquimista, quanto na psicoterapia.

Jung (1985) acredita que “Enquanto alguém souber que é um portador de vida e considerar importante que esteja vivendo, então também ainda estará vivo o mistério de sua alma, pouco importando que seja de modo consciente ou inconsciente”. Algumas pessoas podem sofrer mais ao longo de suas vidas, outras menos; não existe algo que possa, com justiça, fazer alguma medição – e no final das contas, do que essa medição de sofrimentos serviria? No entanto, “se, porém, alguém não enxergar a finalidade de que sua vida consiste em que ela se realize, e também não acreditar que existe um direito eterno humano de liberdade para obter essa realização, então essa pessoa traiu e perdeu sua própria alma…” (Idem). Em Alquimia, Von Franz (1993) cita o alquimista egípcio Zózimo que dizia que “Toda a alquimia depende do kairós e chama até a operação alquímica de kairikai baphai, a coloração de kairós”. De acordo com o alquimista (Idem), esses processos não aconteceriam espontaneamente, mas só no momento astrologicamente certo; kairós, portanto seria o momento em que as coisas podem ser realizadas com pleno êxito. Ou seja, de certa maneira sempre haverá um tempo propício para que a alma seja enfim resgatada e cultivada. É para isso que o fogo está no mundo.

Carolina Iantas Ferreira – Curitiba 2010
Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Psicologia Analítica do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Especialista.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.