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S. Ogan Kaian

por Lourenço Guimarães

Como já era de costume, domingo à noite fui à casa do Pai Fernando. Lá se vão mais de dez anos. À época, todos esperavam a noite toda pelo momento em que ele se postaria, com seu trejeito habitual de cruzar o braço pousando a mão sobre o lábio superior, e miraria focalizando algo que ninguém mais via. E neste dia, não foi diferente. O silêncio tomava conta do ambiente e o suspense de nossas cabeças quando ele se virou pra mim e falou:
– Lolô, tem um espírito atrás de você.
Finalmente chegou minha vez! Pensei.
– Mas quem é? – perguntei.
– Não sei, mas ele parece estar soltando vapor pelas ventas. Não está muito alegre, não – respondeu, já virando pro lado e mudando de assunto.
“Jesus!” – clamei em silêncio, já arrependido de ter esperado tanto por uma mensagem pessoal. O suspense se transformou em drama pela próxima meia hora, até que, de repente, ele se vira e afirma:
– Lolô, quem está atrás de você é o Senhor Ogan Kaian. Ele é o espírito responsável por nossa Engoma. Ele está bravo porque a Engoma está uma bagunça e quer que você arrume isso.

A surpresa de todos foi grande, pois nunca havíamos escutado falar de algum espírito-ogan que fosse o responsável por cuidar de nossa Engoma. Fiquei desapontado comigo mesmo, pois não sabia que estava assim tão ruim a nossa corimba. Ao mesmo tempo me senti ainda mais respaldado a exercer minha hierarquia. No fim, acabei feliz por ser o escolhido para arrumar a casa.

Depois deste episódio, passamos a cultuar este fortíssimo e enorme espírito, colocamos algumas regras, conscientizamos as pessoas quanto à importância dos atabaques e de toda a Engoma. Aos poucos a Engoma foi se tornando mais firme, mais pura, mais séria e em maior harmonia com o trabalho. Aqueles ogans velhos foram sendo substituídos por muitas crianças que apareceram com brilho nos olhos, envolvidos pela magia do atabaque.

Passado algum tempo, perguntei ao Pai Fernando, no começo de uma gira, como estaria o humor do nosso Ogan Kaian. Ele me falou: “Quando saudarmos a Engoma, fique rufando o atabaque por algum tempo”. No momento em que o saudamos, fechei meus olhos e, enquanto eu rufava, senti meus braços formigando e logo todo o meu corpo estava vibrando intensamente. Eu parecia ter três metros de altura. Não escutava mais nada e não enxergava mais nada a não ser aquele Lé em minha frente. Aquela energia pura em forma de som parecia transcender o ambiente, o terreiro e a matéria. Foi a primeira vez que ele incorporou e para mim foi a incorporação mais intensa e forte que já tive em toda a minha vida. Desde então, toda gira eu paro na frente de sua vela e peço a ele que não deixe faltar harmonia em nossa Engoma, peço que o som que ela produz seja ouvido por todos os espíritos de luz, pelos quatro cantos de Aruanda, e que todos venham ver a nossa festa, a nossa alegria de tocar e o nosso trabalho de Umbanda.

Tive a oportunidade de incorporá-lo outras vezes ao longo destes anos e a cada vez que ele vem, o sinto progressivamente mais sereno, mais suave. Muito diferente daquele touro bufando do primeiro contato. Embora seja sempre muito sério, um verdadeiro soldado de Ogum, suponho que sua calma reflita seu humor, e que ele se mostra mais feliz com nossos ogans, com a alegria que vejo nossos atabaqueiros tocando, com a unidade das Engomas de todas as giras que vemos nos trabalhos de mata e de praia, com a firmeza dos nossos trabalhos.

Mais tarde, nossa Engoma ganhou ponto cantado e riscado, o que só vem reforçar a importância de respeitar seu culto e o profundo respeito pelos instrumentos sagrados. Mais do que isto, a presença e a identificação do Senhor Ogan Kaian vem demonstrar a grandeza, a segurança e a firmeza do TPM. Nunca conheci outro terreiro que tenha identificado e que cultue o espírito responsável por sua Engoma.

Saravá Seu Ogan Kaian!

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