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A AJUDA QUE VEM DOS CÉUS – por Felipe Rigo

O som dos atabaques soava alto repicando o tradicional chamado dos guias daquele querido e conhecido terreiro de Umbanda. Túm tátá tum tum tá tucudúm tátá tum tum tá. Desde criança Fernando frequentava aquele local. Era pra onde levava suas preocupações, aflições, descontentamentos e sofrimentos de garoto. Os problemas com o pai, a indecisão do estudante à beira do vestibular e as pequenas paixões que fazem parte da vida de todo adolescente. Tudo acabava sendo dividido com as queridas entidades que sempre possuíam um conselho, um afago, orientação e muitas vezes puxão de orelha para o garoto atrevido.

Naquele dia em especial, o agora jornalista queria mesmo era retornar para agradecer. Durante os primeiros anos de sua carreira como jornalista investigativo, muita pedra fora quebrada, muitos egos contrariados e algumas demissões surpresa por bater de frente com figurões da política e gente que sempre encontrava meios de controlar os jornais e demais meios de comunicação por onde passava.

O fato é que Fernando tinha muito talento. E gente com esse tipo de talento incomoda.

Sentado no banquinho e esperando sua vez de falar com o índio guerreiro da linha de Ogum, Fernando sempre se admirava com a beleza do local. A luz bruxuleante das velas, o cheiro de ervas defumadas espalhado no inicio do ritual, as saias brancas rodadas das médiuns e guias de contas coloridas que misturavam a magia e o mistério da religião tão brasileira e tão universal. Som, luz e movimento.

A fé de Fernando era confusa e sincera. Tinha grande amor pelos mestres que ali encontrara e muito respeito com todos, principalmente com Akuan, o índio guerreiro chefe espiritual do terreiro, com quem teve as mais importantes consultas e cuja presença o fazia sentir uma mistura de calor e frio na espinha.

Os atabaques interromperam o ritmo repentinamente pra receber aquele que no nível espiritual era o responsável pelos trabalhos que ali se realizavam. Um momento de silencio absoluto tomava conta de todo o terreiro antes do pai de santo, já em idade avançada, caminhar tranquilamente até o centro. Com as mão estendidas como quem recebe as benção de nosso Senhor, em pé sobre o desenho do pentagrama talhado em pedra em frente ao congá com as imagens dos santos católicos sincretizados, o silencio era eloquente e aumentava o furor para o que havia de chegar.

Com a precisão de uma coreografia sobrenatural nunca ensaiada, a Ogã inicia o ponto cantado, sem a interferência de nenhuma das vozes das centenas de pessoas que sempre abarrotavam aquele local sagrado às segundas-feiras.

Sua voz doce inicia solitária a cantoria:

– Pai Akuan, guerreiro de Ogum!

Ao que se juntam as vozes dos médios da corrente:

– Pai Akuan, guerreiro de Ogum!!!

Novamente sozinha, a Ogã ainda contendo o poder da sua voz, declama em respeito à entidade:

– Sua corrente é de ferro é de aço, com alma e coração…

Nesse momento, cortando o silêncio como trovão que não hesita, a explosão dos atabaques faz até o couro do mais descrente dos ateus se eriçar pela energia ali descarregada com as centenas de vozes em uníssono:

-Elos batem no compasso da fé! Elos batem no compasso do amor! Não há demanda ou despacho sob a luz da sua proteção!

O experiente médium sente a presença do espírito de luz e cai sobre o joelho direito com as mão cerradas batendo contra o peito três vezes:

– Hei! Hei! Hei!

Num gesto magistral, com a palma da mão direita para cima, a entidade risca no ar como uma meia lua olhando diretamente nos olhos de cada um dos que o cercam e conforme cruzam com o seu olhar prestam suas reverências com as cabeças tocando levemente o chão.

E ali estava ele, o espírito enviado por deus para orientar os trabalhos do terreiro, que auxiliava na evolução espiritual dos fiéis que congregavam da fé brasileira e naquele dia, especialmente para Fernando e mais uma meia dúzia de sortudos, pra dar atendimentos espiritais, que na Umbanda são sempre uma rica mistura de confessionário católico, ritual xamânico e divã de consultório psicológico.

Fernando não era o primeiro a ser atendido. Apesar da discrição, era possível observar alguma coisa do que se passava na primeira consulta. Uma senhora de aproximadamente cinquenta anos, sentou-se aparentando desconforto em frente ao homem que agora se comportava de maneira diversa do pacato senhor de minutos atrás.

Os umbandistas acreditam que os espíritos trabalham em conjunto com os médiuns e durante o tempo em que o membro da corrente está incorporado com o espírito guia a voz muda, as feições e gestos também, de acordo com as características da entidade. No caso do índio guerreiro Akuan, a maior diferença era a presença. Apesar do médium franzino e frágil, a sensação de estar frente à frente com o caboclo era como a de ser observado de cima, por um gigante, capaz de fazer sombra e gelar os ossos dos desavisados. Contudo, o sorriso era cativante e as palavras gentis. Coisa de índio talvez, acostumado com a natureza e sua sabedoria que a todos alimenta.

O conteúdo da conversa era impossível de decifrar. Mas em poucos segundos a mulher sorriu, fechou os olhos e chorou. Dividiu ali, como Fernando tantas vezes fizera, as mazelas de sua vida, ou de algum parente a quem pretendia ajudar. Recebeu do velho índio uma vela, um afago e uma benção. Pra muitos era o cuidado essencial e simples que fazia toda a diferença pra encarar mais uma etapa nesse mundo de tanto sofrimento e dor.

A mulher se levantou com ar de gratidão e seguiu em direção ao jardim dos orixás, um lugar tranquilo e cuidado pelos integrantes do terreiro para que os fiéis façam suas entregas, suas preces e acendam suas velas sem receio de serem vandalizados ou agredidos pelas ruas.

Fernando não era o próximo, mas o caboclo mandou chamar.

– Trás o meu menino primeiro, ele vai ter que sair daqui rápido hoje.

A cambone que auxiliava o médium incorporado pediu desculpas para o senhor com ar de executivo, que estava logo à frente de Fernando e deveria ser o próximo, dizendo que precisava esperar só mais um pouquinho.

-Fernando, venha cá, o pai já quer falar com você.

Fernando pediu licença ao engravatado, passou pelo lado do congá e por entre alguns médiuns da corrente, sentou-se à frente da entidade com o grande sorriso que herdara da avó. Já tinha repetido aquele ritual por tantos anos que se sentia quase tranquilo. Contudo, conforme os atabaques soavam mais alto e a fumaça do charuto tocava seu rosto, o coração invariavelmente acelerava. Um estado leve de êxtase tomava conta do seu corpo conforme sentia a vibração dos atabaques do lado direito do rosto e o sentimento de respeito emanava sem a necessidade de palavra alguma. Religiosamente saldou a entidade:

– Saravá, meu pai!

– Saravá, menino!

Depois de uma pequena benção e gestos sobre a cabeça de Fernando, que lembravam alguém a tirar teias de aranha de um abajur velho, Pai Akuan disse com tom de voz preocupado:

– Menino veio pra me contar algo, mas eu que tenho algo pra te contar. Trabalho é bom, meu filho. E pra esse trabalho novo filho precisa de muita proteção.

– Sim meu pai, é sobre esse novo trabalho que eu vim contar. Estou muito feliz. É a oportunidade que eu queria!

– E eu não sei?

Fernando não conteve o riso, ambos riram, mas logo o tom mais severo do índio guerreiro voltou soberano e com seu português quebrado, típico dos índios muitas vezes escravizados no Brasil, como os negros por muitos séculos também foram, disse ao consulente:

– Gratidão é bom, menino. Quem não sabe ser grato não sabe ter paz. Não dá pra ser feliz sempre, mas quem não tem paz não é feliz nunca. Tem muita injustiça nessa terra. A tua missão é abrir os olhos do mundo pra injustiça. O teu fardo não vai ser leve com esse trabalho. Mas se tem alguém que pode dar conta, é você!

– Sim, obrigado meu pai. É isso mesmo! Vim para agradecer. Consegui o trabalho no jornal que eu queria! O chefe de redação é conhecido por dar muita liberdade aos jornalistas e o reconhecimento por quem trabalha duro por lá é sempre comentado pelos colegas.

– Que bom filho. Mas não esquece o que eu vou te falar agora.

A expressão do caboclo ficou pesada e quase com um tom de urgência alertou Fernando.

– Hoje não tem vela pra você nem nada disso. Tua proteção vem de deus e dos orixás dessa casa. O filho vai receber um sinal hoje ainda. Vai ser o início de um caminho de sombra que você vai ter que passar. O seu tempo de menino nessa existência acaba hoje. Toma um gole aqui do meu maráfo e vai pra casa. Saravá, menino!

– Saravá, meu pai…

Fernando se levantou sem fazer perguntas. Não que não tivesse nenhuma, muito pelo contrário. Mas sabia que por vezes não era o caso. Fim de papo é fim de papo! As coisas vão se esclarecendo com o tempo, já dizia sua mãe, desde a primeira vez em que o levara ainda criança no Terreiro que aprendeu a amar e respeitar, mesmo que muitas vezes duvidasse de sua fé e nas coisas que as vezes aconteciam por ali. Não acreditava em tudo o que via, mas achava muito bonita a mistura tão estética das luzes, cores e som dos tambores trovão.

Contudo, aprendeu sempre a levar com seriedade as conversas que tinha com seu guia espiritual. Fossem coisa do outro mundo ou somente um estado de consciência especial que aquele homem conseguia alcançar. Trazia as conversas no coração e aprendera a dar ouvidos aos conselhos. Se deu mal muitas vezes por não ouvi-los.

Foi direto pra casa, como recomendado pelo caboclo, chegou por volta das 23:00, sentou no sofá e acendeu um cigarro. Adormeceu pesado e sem se dar conta, com o reflexo da televisão a brilhar na fumaça azulada que subia tranquila do cinzeiro quase cheio. A caixa de pizza que pedira na noite passada ainda permanecia na mesa de centro, cobrindo o celular que não encontrava desde que tinha saído para visitar o terreiro.

Parecia o sono dos deuses, profundo e sem sonho nenhum. Seria a noite perfeita na véspera do primeiro dia no novo emprego. Fernando levou um susto quando seu celular tocou e vibrou desesperado em baixo da caixa de pizza.

– Puta que pariu! Grunhiu com os olhos semiabertos.

Quem será essa hora?

Olhou pro relógio de parede pra ter certeza, 4:15 da manhã. O número era privado mas jornalista que se preza não pode deixar de atender.

– Alô!? Quem fala?

– Fernando, aqui é Sofia, não posso dar muitos detalhes. Vem já pro passeio público que você precisa ver isso antes da polícia científica desmontar tudo! Corre!

A ligação terminou de repente, mas o recado era claro. Fernando vestiu a jaqueta e colocou os óculos escuros, até se lembrar de que horas eram e se sentir um idiota.

Entrou no elevador e apertou o botão da garagem sem trancar a porta do apartamento. Não havia tempo e notícia não espera.

Pensou no curto momento entre o quinto andar e o nível subterrâneo:

– Será esse o sinal que o caboclo falava?

Sofia era uma amiga de infância e trabalhava na polícia civil. Geralmente trazia informação quente e Fernando devia muitos dos furos à ela. Pra ligar nessa hora da madrugada e com aquele tom de voz a coisa era séria, melhor acelerar e checar de uma vez.

Pois a coisa era realmente séria. Séria, sinistra, e absolutamente ninguém poderia imaginar o que ainda estava por vir.

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