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Entrevista Dona Maria Navalha

O relato a seguir é fruto de uma entrevista realizada na gira de Quimbanda de 17 de maio de 2010, no Terreiro do Pai Maneco.

Se é pra vir, venho direto na cangota. É assim que eu funciono.
Comigo as coisas são rápidas, não gosto de enrolação. E gosto de respeito.

História

Minha mãe nasceu em Minas. Só que ela, coitada, não tinha conhecimento da vida. Então, nas viagens dela, ela me largou mais pra cima, na Bahia, com os homens que vendiam crianças. Vendiam meninas como eu, pra outros homens cuidarem. – Cuidar da maneira deles, não é? – Só que eu cansei dessas coisas. Peguei um navio daqueles que transporta cereal. Fugi à noite e esperei no mato até de dia cedo para sair até o navio. Assim eu cheguei no Rio de Janeiro nos tempos antigos; nos tempos dos finais ‘zero zero’.

Quando cheguei, não sabia o que era aquilo tudo. Então comecei a fazer amigos que me levaram para os caminhos errados – até porque eu tinha que ir para qualquer caminho, porque não tinha caminho nenhum.

Aí, na vida eu conheci mais do que devia.

Muito cedo, tudo que eu tinha dentro foi embora. Aí, também nunca tive muitos homens, fora os que eu queria rapar. Essas coisas do amor, eu nunca entendi direito o que eram. Só entendi depois de morta. E não tive muita escolha pra ter sentimento, então eu fui como achava que devia ir.

E também fiz muita coisa errada.

Matei muito gringo por dinheiro… Rondava o cemitério perto do porto e lá eu ficava. Como eu também não conhecia as coisas, usei do que eu sabia fazer, que era às vezes dar uns coices nas pessoas na Capoeira pra ganhar o que eu queria. Eu participei das rodas pra lutar, não pra dançar, nem pra gingar.

Eu usava as navalhas sempre que preciso. Sempre que eu precisava e que achava que eu precisava – pra mim tudo era motivo para usar. E eu não tinha só uma, eu tinha três. Duas nas pernas e uma atrás. Porque quando você dança, quando você luta, você pode pegar de vários lugares as navalhas.

Então, eu ficava rodeando aquele cemitério e me escondia no porto. Seguia no meu dia a dia, com os peões, os homens, as biritas. E sempre na rua. Os lugares onde eu dormia também eram na rua. Perto do porto – que é de lá que eu venho, da linha do mar.

Assim eu fui até o dia em que um homem – que eu já encontrei – me rapou por trás e me degolou inteira! Mais uma cicatriz.

Então eu fiz da minha vida, o meu trabalho, para poder evoluir.
(Se Oxalá liberar, não é?)

Quimbanda

Cheguei na Quimbanda com muita luta também, mas sem navalha. E essa eu tive que lutar no mental. Tive que lutar contra o meu mental para ir chegando nos patamares onde já cheguei. É difícil, mas se consegue. E eu peguei o cavalo bem por isso, porque ela achava que não conseguia. Eu vim mostrar pra ela que ela podia

Eu agora estou ganhando meus pontinhos, me ajudando. A menina me ajuda também – pra poder ajudar os outros – e assim todo mundo se ajuda. E é só ajudando os outros que eu consigo o que eu quero.

Às vezes a gente não entende direito que precisa trabalhar com amor. Mas quando você entende, fica mais fácil alcançar os lugares que tanto quer, seja onde for. Eu tenho muito ainda pra fazer. Ajudo as pessoas que aqui na carne precisam; e elas às vezes é um pouco mais fácil de ajudar quando elas querem. Os espíritos algumas vezes têm outras coisas envolvidas. O tempo – o tempo que não é do relógio – mas um tempo maior, que às vezes tem que esperar… Mas à maneira do possível, quem eu posso, sempre ajudo.

Só não gosto de exu mandão. Essas coisas comigo não adianta, porque quem manda em mim sou eu. Presto serviço, com muito carinho, com muita vontade, porque eu sou muito feliz onde estou agora.

Vim a mando do Tranca Ruas das Almas e dela, Maria Padilha das Almas.

Sobre S. Tranca Ruas das Almas

É ele que libera a Esquerda, não é? É claro que ele recebe ordem de alguém, mas é ele quem libera. É para ele que eu trabalho, para ele e para Maria Padilha das Almas.

E como é que não pode chamar o protetor de anjo? Ele me ajudou muito. Nem o cavalo dele sabe o quanto. Eu tenho uma relação de muito dos além-mar com ele. Gosto muito dele, como todos os exus aqui que trabalham pra ele. Ele é o meu anjo. Ele protege todos nós aqui.

Tranca Ruas das Almas me ajudou bastante a subir ponte, as escadas, para largar as cicatrizes que eu tive da vida. Não só das carnes que eu tive quando era viva. O trabalho foi muito difícil, mas eu estou aqui e vou continuar.

Sou bem mais que pomba gira.
O que eu sou e o meu poder englobam muito mais do que esse nome.

Véu

Elas (D. Maria Padilha das Almas e o cavalo) têm vontade de que eu largue as navalhas e de que eu cure as cicatrizes. Para eu ser um pouquinho mais amorosa. Mas sabe, isso eu já sou. Só que muito lá dentro, guardado a sete chaves.

Também eu espero um dia poder largar tudo e não precisar de nada. Mas, como eu disse, às vezes quem vê se assusta. Até na vida que eu levava, tinha que botar o véu. Não era dessa cor, mas era um véu, para os homens não se assustarem com a minha cara.

Para eu ter todo esse domínio, tenho que ralar muito, trabalhar muito, me dedicar muito. Eu não durmo, entende?

Domínio

Esse é o meu domínio (ponto), e ele engloba várias coisas.

Isso que você vê são todas as esquinas que você pode imaginar. Estão todas aqui – pelo menos as que eu domino. E são várias. Porque isso aqui é o simbólico, pra dizer quem eu sou. Mas todos esses quadrados têm outros quadrados. Essa cruz você já entende. É pra quem eu trabalho, pra quem eu sou e da onde as almas vêm. E esse (navalha) é pra dizer que quem manda aqui sou eu. É o ponteiro. Porque isso é que é pomba gira.

Os ponteiros eu boto conforme é preciso – e também quando eu preciso modificar as energias. Às vezes precisa liberar aqui, e ali tem que segurar. Como eu disse, a água corre rápido, mais do que o pensamento. Então as águas vêm antes. E eu é que veto aqui as coisas, veto e libero.

As caveiras são minhas amigas. Então elas também trabalham comigo e pra mim. Esse ponteiro aqui é do Tata Caveira. Ele era muito apegado e queria que tivesse esse ponteiro dele no meu ponto. Aí a gente conversou e eu decidi colocar ele aqui ó, no portão entende?

Porque com as ajudas a gente consegue chegar em outros lugares.

Corações

Tem meus corações. Os coraçõezinhos que às vezes eu desenho no meu ponto – e nas velas. Mas assim muito discretamente, pra eu não perder a minha pose. Porque sabe como é, quando abaixa demais, mostra a bunda – como eu gosto de dizer. Então, para as pessoas acharem que eu estou bem lá por cima, sem mostrar a minha bunda, eu às vezes disfarço meus corações.

(Eles são símbolo para) O amor. Para ter humildade no coração. Para saber até o que é o amor e dar pro outro. Eu agora estou no tempo do amor, da luz do amor. Então eu tenho que distribuir isso para as pessoas, não é? Tanto pra você, que está na minha frente, quando pra menina aqui e como pra todo mundo que arria na minha frente.

São as almas que eu sirvo.
Foram elas que me ajudaram.

Falange

Eu, Maria Navalha, venho do porto, na linha que vem por Iemanjá – esse é o orixá que me traz. O poder da água, da transformação.

Meu cavalo sempre teve pavor de navalha e eu venho pra curar ela. Como o orixá mandante dela também. Os orixás, como as entidades, vêm cuidar dos cavalos, vêm fazer com que eles entendam o que eles têm para dar nessa vida. E a menina é amor – e é isso que a minha falange vem distribuir.

Depois de ter penado muito, sem saber o que é amor na vida e também depois dela, venho ensinar isso, uma coisa que nunca tive. Você já imaginou isso? É bastante difícil. Tem que ter muito entendimento, tem que ter muita compaixão consigo próprio pra poder trabalhar na falange que é a minha.

Quem faz parte

A prioridade é das mulheres – porque eu sou uma mulher -, mas também os homens ajudam. Embora a gente ajude mais os homens.

Fazem parte esses espíritos que estavam no caminho para evoluir nesse tempo do agora. Para poder conseguir fazer com que as falanges da luz, do bem, melhorem cada vez mais, para que fiquem cada vez maiores os trabalhos da luz. Para todo mundo ter a mesma sorte que eu. Porque tem muita gente que quer ser ajudada no plano espiritual. Tanto quanto os encarnados. E a vida é o eterno auxílio de compaixão em qualquer plano que se tenha.

Na Terra não é todo mundo que entende. Ás vezes até eu não entendo. Até por isso eu quero às vezes dar umas tragadinhas, para poder amenizar as coisas que eu ainda não entendo.

Eu gosto do que é fio, reto. Corta sem ninguém ver.
É assim que é meu movimento nesses lugares, ninguém nem sabe que eu passei.

A encruzilhada

As esquinas são por onde eu me movimento.
Sabe ar? Quando você vira correndo pelas esquinas, não faz um vácuo?
É isso. Em todo lugar por onde todo mundo já passou tem uma esquina. Tudo aquilo fica. O cheiro das pessoas, o que as pessoas pensam, o que as pessoas comeram. Então pra mim, quando chego no plano da Terra, é pelas esquinas que me movimento. Para mim é fácil. Aí dá pra fazer os trabalhos, cuidar… Quando as pessoas precisam de um trabalho meu ou quando sentam na minha frente, eu sempre digo para elas virarem a esquina. Para elas andarem. Porque aí, quando vira, os pensamentos mudam. E assim eu consigo tirar o que não presta das pessoas sem nem elas verem.

É como abrir navalha, filha, é a virada da esquina. Sempre fica cheiro, fica tudo. Porque as mulheres gostam de entrega nas encruzas? – Eu já prefiro na Cruz das Almas, mas todo mundo gosta de uma esquininha, não é? – E tem esquina no mundo inteiro, filha. E não só nesse mundo aí que você conhece. Até nos outros mundos, tudo é uma grande esquina. E nas esquinas é onde eu me viro. Sempre.

Eu, com um ponteirinho e uma vela, vou longe.

Agradecimento

As pessoas gostam do que eu faço e trazem presente, sabe? Já ganhei até brinquinho brilhante. Isso não é muito da minha preferência, mas eu guardo tudo com muito carinho. Isso é uma maneira também de trabalho: agradecimento materializado. Mas eu não uso nada disso. Eu, com os meus ponteiros e as minhas velas, estou bem feliz. Às vezes sinto falta dos dadinhos, mas eles estão aqui. É uma coisa que eu ainda tenho que melhorar, o apego com os dadinhos. Eles me ajudam a trabalhar também, mas é mais apego.

Dadinhos

Eu jogava nas brincadeiras, pra dar umas risadas da vida. Às vezes passava as tardes jogando isso, nas brincadeiras com amigos. E quase sempre, com as crianças. Fora elas, a minha vida era muito triste. Elas que me alegravam. Sempre gostei muito das crianças. Os outros, maiores, nunca me fizeram muito bem. Acho que eles me achavam muito feia. Ou às vezes me tratavam mal porque eu era da rua. Hoje a minha ligação com as crianças é com as crianças erê. Elas têm muita luz, eu gosto muito delas.

Amigos

Eles foram meus amigos na vida da carne. Os únicos com quem eu não batia de frente eram ele (S. Zé Pelintra) e o Zé da Cova. O segundo, o Zé da Cova, era tão solitário quanto eu. Entendia o que era ficar muito tempo sem falar nada. Hoje ele é um exu, exu de cemitério.

Às vezes as coisas falando são diferentes das coisas sentindo.

Sobre a luz

Encontrei ele (o homem que a degolou) lá, por onde eu ando. E agora quem cuida dele sou eu. O meu problema maior era que eu tinha que cuidar dele com amor. Ele está meio perdido – mas como eu disse: é o tempo dele. Um dia ele também vai ser como eu e vai poder trabalhar também.

Agora lido bem com isso. Tenho que. A luz apazigua qualquer coisa. Qualquer cicatriz, qualquer coisa ruim, qualquer pensamento ruim. Tudo de ruim, a luz quando bate leva. Porque vem trazendo coisas que a gente nunca mais quer largar.

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