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O Gralha Azul

por Gustavo Guimarães

Você percebe que está ficando velho quando deixa de ser sobrinho e passa a ser tio.”

Quem me disse isto foi meu tio Fernando, há muitos anos, falando do tio Dirceu e da influência daquele tio na vida dele. Hoje, com a barba um pouco mais branca, vou falar como sobrinho sobre um cara único que me despertava na infância uma mistura de medo, respeito e curiosidade. Nem lembro quando conheci ele. Provavelmente foi num domingo na casa da vó Alcina, que era uma tradição sem escolha pra mim, cheia de homens e mulheres mais ou menos carecas. Alguns eram irmãos do meu pai e um era ele.

Mas as primeiras memórias com certeza foram as do Haras Gralha Azul. O haras parecia uma terra de fantasia, com cavalos assustadores, montes de cachorros furiosos e muita gente. Gente jogando bola ou tomando café num mundo de adultos que sabiam se divertir. Para participar da festa bastava jogar limpo e não arrumar confusão, coisa que o velho não admitia. No mais, era só chegar. Tinha uns caras
que nem conheciam o Fernandão, do tipo amigo do amigo, e vai ver por isso a coisa fluía gostoso. A Pelada do Fernando virou um ícone na cidade nos anos 70, mas eu tava lá mais inserido no todo, mais na conversa inatingível daquela gente grande e umas loucurinhas de criança: cutucar o garanhão com um pedaço de pau só pra ver ele empinar; ou pescar lambaris sozinho num lago enorme e levar eles pra casa com
orgulho de saber fazer aquilo bem feito.

Numa daquelas tardes veio a primeira ideia idiota dos velhos. O garanhão ia cruzar e a criançada ia poder assistir. Eu nunca tinha visto nada tão carnal e nem sabia direito o que esperar. O objetivo dos carecas provavelmente era didático, mas a gente não parava de rir e o equino falhou com tanta categoria que a cena até hoje revive em mim. Primeira vez que vi o Fernando bravo. Mas daquele jeito: deu esporro em todo mundo e saiu rindo junto.

Do haras pulamos pro Jóquei Clube. Alguém ter uma chácara bombando era lindo, mas ser dono de um cavalo que ia correr era algo digno de muito respeito. Era quase inacreditável para alguém de oito anos. Uma coisa meio gangster naquele lugar, meio bangue-bangue, cheio de gente estranha e carrancuda, num mundo de adultos que sabiam se divertir de forma estranha e carrancuda. Antes dos páreos, no entanto, vinha a parte mais louca: as cocheiras.

No caminho para as cocheiras:
– Pare de chutar pedra , Gustavo.
– Por quê?
– Porque suja meus sapatos! (Não que ele fosse muito vaidoso, mas sapatos limpos deviam ser o requisito mínimo nas sociais dos paletós.)

Um puro sangue inglês devia ter uns três metros de altura do meu ponto de vista, por isso, nas cocheiras, eu ficava grudado no cara. Só não dava a mão porque era coisa de criança, mas ficava de olho aberto, atento a movimentos estranhos dos cavalos. Qualquer coisa eu apelaria para o amansa-criança.

Não sabem o que é isso? O amansa-criança era bizarro: um bíceps em forma de bolota totalmente desproporcional ao restante do braço meio fino e peludo. Era de botar medo. Mas era ao mesmo tempo a certeza de que estaríamos seguros em qualquer ocasião.

O fato era que eu não gostava de cavalos e nem eles de mim. Tomei mordida, tomei coice, montei e caí mil vezes. Mas com jogo era diferente, amor desde sempre. E poder ver as filas de gente apostando me fazia acreditar no dinheiro fácil e no estrago que ele faria em minhas mãos. Queria compartilhar isso com ele e quase implorava para ele apostar. Mas o barato dele era outro. Era falar com todo cara esquisitão que passava por ali, sempre apresentando o sobrinho. Eu ali, saindo do carrossel e eles lá, cavalões comendo.

O tempo passou e perdi o medo. O haras também passou e procuramos outras diversões. Sempre fui muito à casa dele falar de macumba e também para Morretes falar de mosquitos e butucas. Mas foi no estádio que mais brincamos. Foram centenas de jogos e não lembro de  nenhum resultado, nem mesmo dos jogadores e nem das datas. A coisa era mesmo uma catarse em forma de gritos contra o próprio time. Um desserviço total, uma paixão sem razão nenhuma, mas ali vibravam milhares de pessoas com um objetivo comum e isso valia muito. Aliás o que fazíamos ali mesmo? Assistíamos as arquibancadas. Olhar para os outros torcendo era o que movia o nosso bonde. Era para isso que
estávamos ali. Para ver, sem criticar, o ser humano, ora em momentos de fúria ignorante ora em êxtase total, num sobe e desce infernal. Acho que nunca comentamos sobre estas impressões, e ele era assim, aprendizado pela observação e pela intuição. Gente que gostava de gente e que entendia de gente, de cavalo, de cachorro, de mosquito e butuca.

Valeu, tio!

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