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Visita aldeia indígena Araça-í

Domingo, 29 de Março.

Tinha tudo para ser um domingo tipicamente curitibano. Dia cinza, com cara de chuva. Mas naquele dia um grupo, bem grande por sinal, resolveu se reunir para fazer algo diferente.

Eu poderia caracterizar como “fazer o bem”. Mas não posso reduzir a atitude deles apenas em uma falsa ilusão de levar coisas boas ao outros, definitivamente não. Eles resolveram resgatar, ou talvez redimir um pouco, a sua raiz. Resolveram suprir uma lacuna aberta há muito tempo, e que até hoje está incurada.

E assim rumaram para a aldeia indígena Araça-í. Tribo localizada em Piraquara, à uma hora da região central de Curitiba, nos mananciais da SANEPAR, uma área de proteção permanente.

Como todas as visitas que lá fazemos, fomos recebidos com muita euforia e carinho. Também pudera, basta olhar ao redor para entender o que acontece ali. A fome é uma realidade constante naquele local. Nossa visita para eles representa o não esquecimento da sociedade. Demonstra que há sim quem se importe com suas condições (ou a falta delas). Percebemos que ali a carência de vários elementos básicos se mostram duramente presentes.

Levamos muito mais que comida. Levamos carinho, singularidade, solidariedade. Mas pegamos muito também. Pegamos cultura, força, sabedoria e principalmente: resistência. Entendemos na pele como e porque nossos caboclos são sim a resistência e perseverança encarnados na terra. Resistir ao que lhes é imposto é uma tarefa realizada diariamente pelos moradores daquelas casas feitas de pau a pique, que passam por situações que nós jamais conseguiremos imaginar.

Com muito respeito fomos recebidos pelo pajé e ex-cacique Seu Marcolino. Durante breves momentos pudemos entender quem são aqueles Guaranis sobreviventes. Residindo há 15 anos nos 44 hectares cedidos pelo então secretário do meio ambiente do Paraná, no ano de 1999.

Saíram de Mangueirinha, interior do Paraná, onde residiam em uma fazenda. Saíram por vários motivos, primeiramente, segurança. Na área em que moravam passava uma rodovia, que frequentemente causava acidentes às pessoas da tribo. Mas havia também o problema de conflitos culturais. Na região existiam muitas igrejas evangélicas que invadiam o espaço deles, tentando literalmente catequizá-los, atrapalhando a permanência e cultivo dos ritos religiosos e culturais.

Quando vieram para as terras demarcadas, Seu Marcolino relata que não houve apoio da FUNAI. Apenas o secretário do meio ambiente providenciou o transporte e habitação para, na época, 40 índios guaranis. Como vieram para terras dentro da área de proteção ambiental, houve resistência por parte da SANEPAR (proprietária das terras , de modo que até hoje não tenha acontecido a demarcação correta), visto que a FUNAI se comprometeu a aumentar a quantidade de espaço.

Atualmente, a aldeia conta com o apoio da Prefeitura de Piraquara com relação à saúde e algumas necessidades pontuais, como coleta de lixo e ambulância. Com relação à estrutura da tribo, o Pajé nos relatou que existe um programa de saúde indígena que leva toda semana um médico até a aldeia. Além disso, na área da educação existe um professor que é guarani, e ensina as matérias e a língua materna, de modo a cultivar a cultura.

Seu Marcolino é pai de Laerte, atual cacique da tribo, e atua conjuntamente com ele, devido a sua experiência. Todos os assuntos de interesse da tribo com a sociedade, quem trata e resolvem são eles. É desse modo que se dá a hierarquia da tribo. E todo problema existente dentro da tribo é retratado a eles, pois são os responsáveis pela paz e segurança na aldeia.

Pergunto ao Seu Marcolino como funciona a relação deles com a terra, visto que eles já se reconhecem no local e fazem dali seu território. Fui informada que a eles foi permitida a caça para subsistência e o cultivo de pequenas horas, desde que não haja desmatamento da área. Não são permitidas grandes mudanças na terra, o que acaba sendo um problema, pois os impede de cultivar coisas excedentes.

A subsistência da tribo advém da venda de artesanato. Alguns às vezes vão a Curitiba, mas a distância é um impasse que dificulta bastante esse deslocamento, uma vez que não possuem carros. Em relação ao dinheiro, apenas o professor recebe para dar aulas na escola. O relacionamento com a FUNAI existe, mas seu Marcolino não entrou em detalhes, dando a entender que existe conflitos com a entidade que os representa.

Basicamente, sobrevivem de doações como as nossas. O que me causou grande espanto, pois, apesar de todo o esforço, nossas visitas são esporádicas. Impossível não questionar como e em quais condições essas pessoas sobrevivem naquele local.

Seu Marcolino relatou que a necessidade mais urgente e estrutural são as casas. Me contou que possuem 20 casas (sendo algumas delas bem difíceis de serem consideradas como casas, sendo na verdade, abrigos que deveriam ser temporários), e para assentar todas as pessoas da tribo, seria necessário pelo menos mais 15 casas, visto que nesses 15 anos a tribo passou de 40 pessoas para 85. Apesar dos pontos negativos, todas as casas possuem acesso à rede elétrica e água encanada.

A parte que mais me encantou foi a preservação da cultura Guarani, e a batalha diária de cada um deles para que a tradição não morra, não caia no esquecimento. Além da língua, os rituais indígenas ainda se fazem presente. Todas as noites existe um “reza para não esquecer”, de modo que seja passada a tradição para as novas gerações, seja pela religião, seja pelos cantos e transmissão de histórias.

Acreditam em 4 deuses: Deus; Tupã, Karaí e Zacairá. Existe Deus, que criou tudo. Tupã, que é o responsável pela chuva – e até hoje cantam e dançam para ele. Karaí e Zacairá são deuses responsáveis pela cura das enfermidade e doenças que podem acometer tanto as pessoas quanto a terra. Utilizam o cachimbo petanguá para realizarem trabalhos de cura através da defumação e poder das ervas usadas.

Ao final da conversa ficou a reflexão: Como estamos tratando as nossas raízes? De que modo atuamos com o reconhecimento do verdadeiro povo brasileiro, que foi aniquilado e dizimado ao longo desses 500 anos de história miscigenada?

Não há como não se inquietar, culpar e, principalmente, envergonhar. A ajuda que damos é essencial. Mas ainda é pouca. Precisamos nos preocupar verdadeiramente com esse povo que tanto representa para a nossa identidade cultural.

Não devemos julgá-los sob nosso olhar elitizado, branqueado e civilizado. Devemos reconhecer seus espaços e tentar ajudá-los a preservá-los dentro de si. Jamais, jamais podemos querer ensiná-los coisa alguma. Seja na maneira organizacional, seja na cultura, seja como for. Não nos cabe esse juízo de valor. Jamais saberemos o que eles passaram. Devemos na verdade, ter humildade e resignação de aprender com eles seus valores, seu espírito de união e amor à terra. Devemos valorizar a sabedoria vinda das matas e a força dos guerreiros caboclos. A eles cabe a minha profunda admiração e gratidão pela partilha de ensinamentos. Quem sabe um dia eles possam ocupar o verdadeiro espaço que merecem.

Texto: Ana Caroline Mayrhofer / Fotos: Renata Monte Serrat

 

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